Os Ketuvim Notserim
Introdução:
A coleção de livros e cartas
conhecidos no meio judaico nazareno como Ketuvim Notserim ou Escritos
Nazarenos, vulgarmente denominado pelos cristãos de “novo testamento”, formam
uma coleção de escritos deixados pelos seguidores de Yeshua e denominados pelos
historiadores como testemunhas oculares pois, supõe-se terem sido escritos por
aqueles que conviveram ou mesmo viveram no mesmo período (contemporâneos) dos
discípulos do Messias.
O próprio Yeshua não escreveu
absolutamente nada sobre sua vida e seus ensinos, tarefa assumida por seus
talmidim. É pouco provável que os primeiros discípulos fossem alfabetizados
tendo em vista que o índice de alfabetização no Império Romano por volta do
primeiro século era baixíssimo. Muito mais na província da Galileia, uma das
mais distantes e pobres de todo o Império. Nesta região onde Yeshua cresceu e
pregou, ser alfabetizado era um luxo de poucas pessoas, algo restrito a nobreza
e ao alto clero.
Portanto, nas comunidades nazarenas do primeiro século as
taxas de alfabetização eram baixíssimas, pois os primeiros seguidores do
Messias vinham em sua maioria das classes mais pobres e menos letradas.
Por isso, as narrativas
históricas que levam o nome de “evangelho” cuja autoria carregam nomes de alguns
dos discípulos do Messias, nunca foram escritos por eles próprios, esta era uma forma de
alguns autores anônimos darem créditos aos seus escritos, todavia, isso não
invalida a autenticidade dos Escritos Nazarenos visto que, terem sido
narrativas que contam relatos orais dos acontecimentos da vida e obra de Yeshua
contadas por pessoas denominadas de testemunhas oculares.
As
Primeiras narrativas:
As primeiras narrativas a serem escritas foram às Epístolas de Shaul haSheliach, denominadas pelos cristãos de “cartas
paulinas”, estas foram escritas muito antes dos chamados evangelhos, aproximadamente uns
20 anos depois da morte de Yeshua. Shaul era
um homem bastante instruído, segundo o relato bíblico ele foi ensinado
por um ilustre líder fariseu de nome Gamaliel, vejamos o relato de Atos:
“Eu sou judeu, nascido em
Tarso da Cilícia, mas educado nesta cidade, aos pés de Gamaliel, instruído
segundo o rigor da Lei de nossos ancestrais, zeloso por D’us, assim como todos
vós sois neste dia” (Atos 22:3).
A existência de Gamaliel
como respeitado e influente Raban (título superior ao de rabino) é confirmado pela Míxena que diz a seu
respeito:
“Quando Raban Gamaliel, o ancião, faleceu, cessou a glória da Torah,
e pereceram a pureza e a santidade” (Sotah 9:15).
Portanto, Shaul era um homem
culto por ter estudado com alguém de elevado nível entre os judeus, ele teria
todas as condições de escrever sobre a vida de Yeshua, mas ele se limitou a
redigir apenas algumas cartas de aconselhamentos endereçadas a algumas
Comunidades nazarenas da época. É válido se ressaltar que, o fato de Shaul
nunca ter conhecido pessoalmente Yeshua não o desqualifica como um autor
ilibado, visto que, ele ter conhecimento sobre as narrativas orais da vida de
Yeshua que já circulavam no meio nazareno.
Quantos
são os chamados “evangelhos”?
Embora a igreja romana tenha
escolhido apenas quatro para compor a chamada coleção dos “evangelhos”
considerando-os canônicos, porém, haviam outros, dentre os quais podemos citar
o "Evangelho de Pedro", "Evangelho de Nicodemos", "Evangelho de Tomé", "Evangelho de
Filipe", "Evangelho da Verdade", "Evangelho de Judas" (Iscariote), "Evangelho de
Maria Madalena" entre outros.
Sempre lembrando que todos
estes chamados "evangelhos" só possuem cópias tardias em grego, ou seja, as cópias
que se tem deles são do ano 200 E.C. em diante. Nenhuma destas cópias dos evangelhos
são da mesma época dos discípulos, entretanto, isto não significa que não
haviam os originais escritos no período dos discípulos, o problema é que eles
não foram encontrados ainda.
Presume-se que tais originais
se perderam com o tempo pelo fato de seus autores terem usado um material
(pergaminho) barato e de pouca durabilidade, também há quem acredite que estes
originais estejam super guardados e que um dia serão revelados, ou ainda, na
pior das hipóteses, a igreja de Roma os tenha destruído após ter feito várias
cópias dos mesmos pois, havia uma ordem do imperador Constantino que se
destruíssem toda e qualquer escritura que fosse contrária às que já haviam sido
“canonizadas” pelos concílios ecumênicos.
Em
que língua foram escritos os Ketuvim Notserim??
Este é um assunto muito
polêmico no meio acadêmico, há questões e questões a serem levados em conta,
alguns historiadores afirmam que os Escritos Nazarenos foram copiados
originariamente em hebraico e aramaico, tendo em vista o testemunho de pessoas
que viveram poucos séculos depois dos discípulos de Yeshua e que declararam
haver pelo menos um evangelho escrito em hebraico, vejamos estes testemunhos:
Eusébio de Cesareia (3º século): “...de todos os discípulos, Mateus e João
são os únicos que nos deixaram comentários escritos e, mesmo eles, foram
forçados a isso. Mateus tendo primeiro proclamado o evangelho em hebraico,
quando estava para ir também às outras nações, colocou-o por escrito em sua
língua natal e assim, por meio de seus escritos, supriu a necessidade de sua
presença entre eles."
Orígenes
(2º século): “Segundo
aprendi com a tradição a respeito dos quatro evangelhos, que são os únicos
inquestionáveis em toda Igreja de Deus em todo o mundo. O primeiro é escrito de
acordo com Mateus, o mesmo que fora publicano, mas depois apóstolo de Jesus
Cristo, o qual, tendo-o publicado para os convertidos judeus o escreveu em
hebraico"
Irineu
de Lyon (2º século): “Mateus,
de fato, produziu seu evangelho escrito entre os hebreus no dialeto
deles..."
Jerônimo
(4º século): “Mateus,
também chamado Levi, e que de publicano se tornou apóstolo, primeiro de tudo produziu
um Evangelho de Cristo na Judeia, na língua e nos caracteres hebraicos, para
benefício dos da circuncisão que haviam crido, Não se tem suficiente certeza de
quem o traduziu mais tarde para o grego. Ademais, o próprio em hebraico está
preservado até hoje na Biblioteca de Cesareia que o mártir Pânfilo ajuntou tão
diligentemente. Os judeus nazarenos, que usam este volume, na cidade Síria de
Bereia, permitiram-me também copiá-lo”
(Obra de Jerônimo: “De Viris Inlustribus” [A Respeito de Homens
Ilustres] – Capítulo III – Tradução do Texto Latino editada por E. C.
Richardson e publicado na série – Texte und Untersuchungen zur Geschichte der
Altchristlichen Literature — Volume, 14, Leipzig, 1896, páginas 8 e 9.)
Todos estes testemunhos são
unânimes em afirmar que havia pelo menos um evangelho escrito em sua língua
original hebraica, sabemos que o evangelho de Mateus não foi o primeiro a ser
escrito e que, segundo os historiadores, os autores do evangelho de Mateus e de
Lucas se utilizaram das narrativas do evangelho de Marcos para compor seus
escritos, sendo assim, se foi produzido um evangelho em língua hebraica
baseando-se em uma outra narrativa, com certeza o livro do qual o escritor se
baseou também estava escrito em hebraico.
Assim concluímos que, se o
Evangelho de Mateus, que foi baseado no Evangelho de Marcos foi escrito em
hebraico, logicamente que o Evangelho de Marcos bem como o de Lucas muito
provavelmente tenham sido escritos também originariamente em hebraico ou mesmo
no aramaico. Válido é se ressaltar que atualmente sabemos que Lucas, autor do
evangelho que leva o seu nome, era de origem siríaco de Antioquia (ver Eusebius;
EccL. Hist. 3:4) e que escreveu seu evangelho justamente endereçado a um amigo
seu de nome Theophilus que era um Judeu que foi sacerdote do ano 37 a 41 E.C. (ver
Flavio Josefus; Ant. 18:5:3), também de origem siríaco convertido ao judaísmo
nazareno, assim como Lucas o era, todos os sacerdotes falavam e escreviam em
hebraico e aramaico, sendo assim, obviamente, sua linguagem nativa era o
siríaco, isto é, um dialeto aramaico.
Os
Ketuvim Notserim estão no mesmo patamar que o Tanach??
Aqui, mais uma vez nos
deparamos com um assunto polêmico, não para nós, judeus nazarenos que
vivenciamos o contexto hebraico e não sofremos a influência teológica de Roma,
mas para os cristãos e também para aqueles que vieram para a Teshuvá egressos
do cristianismo.
É do conhecimento de todos
que, quando a igreja romana juntou, escolheu, elaborou, adulterou e canonizou
uma coleção de livros ao qual deram o nome de “Novo Testamento”, seu objetivo
único era fazer com que esta “nova” coleção de escritos tomasse o lugar do
Tanach hebraico entre os cristãos, não foi a toa que o bispo Marcião criou esta
nomenclatura “novum testamentum” fazendo com que Jerônimo classificasse o
Tanach hebraico de “velho testamento” em uma clara demonstração de que o “novo”
veio para substituir o “velho”.
Porém fica a pergunta: Era
esta a proposta dos discípulos e, de maneira mais restrita, a do apóstolo
Shaul? De considerar o Tanach (a Torah, os Profetas e os Escritos) como já
superados e ineficazes?? Claro que não, todas as vezes em que Yeshua e seus
discípulos faziam menção das Escrituras, estavam se referindo ao Tanach
hebraico e não a um suposto “novo testamento” que nem existia na época.
É válido também se ressaltar
que, em nenhuma de suas cartas Shaul se refere a elas como “escrituras
inspiradas”, muito ao contrário, ele chama sim de inspiradas e sagradas as
Escrituras do Tanach, vejamos:
“E que desde a tua infância conheces as Sagradas Escrituras, que podem fazer-te
sábio para a salvação, pela fé que há no Messias Yeshua. Toda a Escritura divinamente inspirada, é proveitosa para
ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; Para que o
homem de D’us seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra” (2
Timóteo 3:15-17)
Da mesma forma o apóstolo
Pedro também se refere ao Tanach como divinamente inspirados:
"Nenhuma Profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a Profecia
nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de D’us
falaram inspirados pela Ruach haKodesh (espírito Santo)" (2 Pedro 1:20-21)
Os cristãos apegam-se a um
único texto mal interpretado de Pedro para afirmarem que os escritos de Shaul
também estão em pé de igualdade com as Escrituras do Tanach, vamos analisar
este texto na íntegra:
“Tenham em mente que a paciência de nosso Senhor significa salvação, como também
o nosso amado irmão Shaul lhes escreveu, com a sabedoria que lhe foi dada. Ele
escreve da mesma forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos.
Suas cartas contêm algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes
e instáveis torcem, como também o fazem com as demais Escrituras, para a
própria destruição deles” (2 Pedro 3:15-16)
Vamos considerar 2 pontos:
a) Pedro não disse em momento
algum que os escritos de Shaul eram inspirados, ao contrário, ele disse sim que
Shaul escreveu com a SABEDORIA que lhe foi dada e não com a “inspiração” que
lhe foi dada. Pedro deixa bem claro que Shaul escreveu seus escritos porque era
um homem sábio e culto, porque tinha sido instruído aos pés de um grande Rabbi
e que por isso tinha a sabedoria para escrever conforme a Torah e o Tanach, até
hoje os judeus chamam para os escritores do Talmude de “nossos sábios”, uma
expressão muito comum no meio judaico e que Pedro a usou corretamente.
b) Pedro disse que os
ignorantes torcem os escritos de Shaul da mesma forma como eles torcem as
Sagradas Escrituras para destruição deles, aqui, Pedro está fazendo uma
comparação de ATITUDE e não uma comparação de escrituras, é muito tolo o
raciocínio de quem pensa que Pedro está pondo os escritos de Shaul em pé de igualdade com o Tanach, pois, por exemplo, quem torce as minhas palavras vai torcer
também as palavras de qualquer um e, até mesmo as de D’us, é exatamente neste
sentido que Pedro se referiu.
Um
judeu precisa do “novo testamento” para reconhecer Yeshua?
A resposta bíblica é NÃO. O
próprio Messias Yeshua disse que, quem quisesse saber sobre ele que pesquisasse
na Torah, nos Profetas e nos Escritos, ou seja, no Tanach, vejamos:
“E começando por Moisés, passando
por todos os Profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as
Escrituras.” (Lucas 24:27)
“E disse-lhes: Foi isso que
eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês: Era necessário que se cumprisse
tudo o que a meu respeito estava escrito na Torah dada a Moisés, nos Profetas e
nos Salmos. Então lhes abriu o entendimento, para que pudessem compreender as
Escrituras” (Lucas 24:44-45)
“Vocês devem estudar
cuidadosamente as Escrituras, porque julgam que nelas vocês têm a Vida Eterna.
E são as próprias Escrituras que testemunham a meu respeito” (João 5:39)
Como vimos pelo próprio
Messias, um judeu não precisa do “novo testamento” para reconhecer Yeshua como
Messias, aliás, todos os judeus que se tornaram nazarenos se convenceram porque
viram a figura do Messias exposta nas Escrituras do Tanach.
Conclusão:
Os judeus nazarenos costumam
classificar as Escrituras da seguinte maneira: *Escrituras Ditadas, *Escrituras
Inspiradas e *Narrativas históricas. A Torah Sagrada forma o grupo de Escrituras
que foram ditadas pelo próprio Eterno, Adonai falava e Moisés escrevia, por
isso costumamos dizer que a Torah não foi inspirada mas sim Ditada pelo próprio
Eterno. Os Escritos Proféticos formam o grupo de Escrituras Inspiradas pela
Ruach do Eterno, Adonai enviava sua emanação espiritual e os profetas escreviam
por inspiração divina. Porém, os Ketuvim Notserim constituem-se em Narrativas
Históricas sobre a chegada do Messias e seu ministério messiânico na terra,
eles são o Testemunho do verbo que se tornou carne e habitou entre nós.
Os Escritos Nazarenos
possuem o seu valor histórico e espiritual, portanto, devem ser considerados e
respeitados como parte importante no processo de Teshuvá, pois narram o
surgimento da primeira Comunidade nazarena, o Yisrael Remanescente que iria
fazer Teshuvá segundo o profeta Isaías(ver Isaías 10:22) e mostra como viviam os
nossos irmãos do passado, é o único documento histórico que temos sobre o nosso
passado, mesmo que depois de tantas adulterações, o que implica em não ser
confiável como regra de Fé e doutrinária, ainda assim testificamos sua
autenticidade original.
Com a ajuda do Espírito do
Eterno conseguimos vislumbrar a essência hebraica e o pensamento judaico por
trás de tantas adulterações e acréscimos que infelizmente eles sofreram, por
isso, é um ERRO GRAVE despreza-los em detrimento do que fizeram com eles,
sabemos que Adonai não se deixa escarnecer e que por isso, toda a verdade virá
à tona, e enfim, teremos de volta os Escritos dos nossos sábios em toda a sua pureza original na qual foram escritos.
Rosh:
Marlon Troccolli
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